Por Issaaf Karhawi, doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP).
Meu irmão caçula é um adolescente de 14 anos. Nos últimos dias, ele foi parar no For You do TikTok (a página principal de recomendação de vídeos) e bombou: 16 mil views, em um perfil com menos de mil seguidores. O vídeo era o registro de sua indignação com o fato do site Brainly ter se tornado pago.
Foi por causa dele que eu entrei no TikTok há mais de um ano. Foram os tiktokers que ele me indicou que comecei a seguir logo de cara. E foi ele, ao lado de seus colegas que tomaram conta da rede. Não foram os empreendedores com iPhone, como aconteceu com o Clubhouse (lembram?). Foram jovens. E essa apropriação desperta em nós o que os cientistas sociais chamam de pânico moral. No caso das pesquisas em comunicação digital, entende-se como pânico moral situações em que jovens, mulheres ou grupos considerados minoritários adotam uma mídia ou prática midiática específica. Essa apropriação gera um medo de que aquilo possa corromper o status quo.
Por anos, por exemplo, as selfies foram entendidas como práticas quase patológicas, desvio de caráter, o ápice do “narcisismo descompensado”. Por quê? Quem posava incansavelmente para selfies com a famosa “duck face”? Jovens mulheres. A resposta da sociedade para aquilo que parecia um desvio? Pânico moral. Até, finalmente, ficar evidente que as selfies eram (e são) respostas ao imperativo da visibilidade do nosso tempo.
Conceitualmente, mas brevemente, o pânico moral se refere a um medo, geralmente baseado na representação da mídia de uma realidade social. Um pânico de questões vistas como ameaçadoras para algo já estabelecido e já aceito culturalmente. Materialmente, coloca-se um discurso de amedrontamento em circulação e encara-se uma rede social como um risco para a nossa cultura, os nossos jovens, para a internet em si.
E o que isso tem a ver com o TikTok? Quando, em julho de 2020, eu conversei com a Folha de S. Paulo sobre os boicotes dos EUA contra a nova rede, falei justamente sobre pânico moral. Para além das evidentes questões geopolíticas – camufladas de roubo de dados -, parece um grande risco um aplicativo chinês, utilizado por jovens, ser consumido massivamente por toda a sociedade. Logo… Pânico moral. Um rechaço também alimentado pelo grande monopólio da nossa atenção: o Instagram. Numa disputa clara pelo nosso tempo.
Agora, estamos enfrentando esse sentimento novamente. Há poucos dias, o head do Instagram Adam Mosseri, fez um pronunciamento sobre como a rede daria mais destaque aos vídeos na plataforma. Uma clara formalização da concorrência com o TikTok. Mas o que mais tem chamado a atenção é a reação dos influenciadores, criadores de conteúdo, do Instagram: “Socorro! Isso aqui vai virar o TikTok! Não quero fazer dancinhas idiotas apontando pra palavras no ar”.
Parece que a reação é fruto da desinformação generalizada que vivemos: como num telefone sem fio, o vídeo do head do Instagram @mosseri – que mais formalizava uma constatação do que, necessariamente, trazia uma novidade – foi ficando pra trás e as conclusões passaram a ser tiradas da interpretação da interpretação da interpretação da interpretação de alguém que viu o vídeo, de fato, num primeiro momento. Porque, no fim das contas, não será preciso fazer dancinha, ainda haverá espaços para fotos, textões, stories… Nada muda. As redes dependem da apropriação feita pelos usuários. Ela pode nascer com o objetivo de ser uma plataforma de streaming de jogos, como a Twitch, e se desenrolar em uma rede para estudos coletivos e leituras de clássicos da literatura – o que tem acontecido por lá. No caso dos influenciadores digitais, a interferência da plataforma no trabalho de criação segue evidente e constante. E isso independe das mudanças.
Mas a reação também parece apontar um quê de pânico moral: “Aqueles jovens fazendo dancinhas… Isso não pode chegar aqui!”. Jovens que são novos influenciadores digitais. Uma rede que cresce diariamente e que mostra que a estabilidade do mercado de influência não é tão certa assim… As mudanças no Instagram e a tiktokização da rede podem significar certa desestruturação de uma economia da influência que parecia já estar consolidada.
E faço um enorme parênteses aqui: identificar pânico moral não significa ignorar a facilidade com que a desinformação circula nessas redes, o consumo passivo (e zumbi!) de conteúdo, a aceleração do tempo e da reflexão, a amadorização da informação e a simplificação de discussões importantes. Também não é desconsiderar a existência de discurso de ódio no TikTok ou a opacidade algorítmica da rede (como em todas as outras!). Reconhecer que nossa recusa e crítica se baseia apenas no que “parece ser” revela formações discursivas importantes para a manutenção do status quo. Nesse caso, um status quo econômico, ocidental, do Vale do Silício, do Instagram, de uma juventude que não é mais aquela que domina as redes sociais (essa indireta é pra você, millenial cringe!) e não está tão à vontade com isso.
No mais, se você não for um pesquisador em comunicação digital, não é preciso dar chance para todas as redes que surgem por aí. Definitivamente não. Se for, a experimentação é essencial. Costumo fazer uma “leitura flutuante” das novas redes. Estou em todas em que há influenciadores, pela minha pesquisa. Algumas viram também espaço de consumo e lazer, outras não. Na Twitch, por exemplo, acompanho youtubers literários que migraram para a plataforma. No TikTok, sigo um perfil genial chamado Elke Vive com trechos de entrevistas da Elke Maravilha. Vejo vídeos de conservação de alimentos, acompanho a rotina de uma motorista de aplicativo divertidíssima. Abro mão dos discursos que circulam e do pânico que se instala para entender as dinâmicas que se dão nesses espaços. Em todas as vezes, as conclusões são as mesmas: há sempre mais em jogo, e o funcionamento das redes revela muito mais dos sujeitos do que das tecnologias. E é depois de entender as dinâmicas de sociabilidade que seremos capazes de criticar a plataforma, a desinformação, a amadorização e os discursos simplificadores. Antes disso, é só pânico moral… Que vem de onde? E por quê?
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Como citar esse texto:
KARHAWI, Issaaf. TikTok e pânico moral. Site do grupo de pesquisa COM+, São Paulo, julho, 2021. Disponível em: <http://www.commais.org/2021/07/tiktok-e-panico-moral/> Acesso em 16/07/2021.