Por Beth Saad, coordenadora do Grupo COM+ e professora da ECA-USP
O programa Papo de Segunda, transmitido pelo GNT nessa 2ªfeira, 31/06/21 trouxe ao debate as urgentes questões do meio ambiente e da sustentabilidade, entrevistando a ex-senadora Marina Silva. O diálogo de Marina com Emicida sobre os “chatos do ambientalismo” inspirou a pensata de hoje: o paralelismo entre a “cultura do lacrou” e a “cultura do cancelamento”.
Duas culturas, ou melhor dois hábitos dos conectados em rede digital, que expressam a mesma idéia – o fechamento de posição, o encerramento da possibilidade de diálogo. Um processo de (in)comunicação se quisermos entender o fenômeno a partir de um enquadramento conceitual.
Sabemos que “lacrar”, na linguagem cotidiana confirma algo ou alguém que foi muito bem numa fala, post, ação – não deixando espaço para reações, contraditórios ou comentários. Ou seja, fim de papo para todos, “a razão é soberana”. Mas, sempre um mas, nossa linguagem é cheia de sentidos e significados e, cada vez mais, vemos posts e comentários nas plataformas sociais que “lacram” individualidades, posicionamentos e reações tão polarizadas quanto a cultura do cancelamento. E os sentidos e significados de cancelamento no cotidiano das redes vai da mesma linha – “bora cancelar já que todo mundo está cancelando...”
Vários pesquisadores do COM+ discutem cancelamento e seu oposto lacrador – Carol Terra e João Francisco Raposo vão pelo caminho do bom mocismo empático, esta escriba também explicou o cancelamento, e a pesquisadora Issaaf Karhawi tem sido uma referência no tema e, mais ainda, quando falamos de influência. Vejam aqui o perfil da Issaaf no Google Acadêmico pra conhecerem o que ela já publicou.
O ponto central de tudo isso está na busca de influência digital por meio de discursos polarizadores, seja lacrando ou cancelando. A pesquisadora Daniela Ramos publicou uma pensata em nosso website pra entender um pouco mais sobre polarização. Quanto mais se acumulam identidades digitais (verdadeiras ou robotizadas) em torno de, por exemplo uma idéia, mais se reforça coletivamente posicionamentos plenos de intencionalidades, para o bem ou para o mal. Lacrar e cancelar buscam uma agregação de opinião pública que corre em paralelo aos acontecimentos, aos registros jornalísticos.
Agregam ao sabor de visões, sejam aquelas planejadas, organizadas a partir da intenção político-social vigente; sejam as visões que afloram a partir de emoções e sentimentos enraizados no comportamento de cada um. É o fluxo opinativo com filtros e contextos individualizados que aspiram um coletivo de confirmação.
Vale retomar aqui a discussão sobre (in)comunicação para entender os processos comunicativos do lacrar-cancelar, já que falamos das duas faces de um mesmo processo e Dominique Wolton dizia que “pensar a comunicação é pensar a (in)comunicação”. Segundo o autor, para que a comunicação se estabeleça é necessário que ela esteja aberta ao outro, propondo relações de diálogo e negociação de sentidos e significados, conciliando os contraditórios necessários à convivência em sociedade. Nesse sentido, o lacrar-cancelar dialoga apenas dentro do próprio grupo ou bolha, ou seja, a prática da (in)comunicação visando controles e vigilâncias (explícitas ou invisíveis) para uniformização de opiniões.
Polarizar lacrando ou cancelando é também uma forma de ênfase dos diferentes “eus” que emergem na rede na busca de confirmação identitária ainda que fluida e transitória. A pesquisadora Paula Sibilia, autora do livro O Show do Eu: a intimidade como espertáculo, esclarece essas multiplicidades de personas digitais de um mesmo individuo. Transitar pelos discursos “lacrou” e “cancelou” nos coloca diante de “eus” que cultuam suas personalidades, ou daqueles que buscam visibilidade ou identificação.
Por último, também podemos entender os fenômenos da lacração e do cancelamento a partir do embate de poderes inerentes às relações sociais. Teríamos que enveredar no conceito de biopoder de Michel Foulcault, que que integra a disciplina às formas de exercer o poder, de modo a transformá-la e adaptá-la. E, também ao que Foucault denomina micropoder, quando formas de poder e vigilância transitam por múltiplas esferas que, pós-Foucault, instalam-se nas plataformas sociais, com potencial impacto em cada individuo.
Esses enquadramentos conceituais nos ajudam a perceber melhor o cotidiano e a oferecer pílulas de conscientização antes de digitarmos indiscriminadamente o #lacrou ou #cancelei. Algo difícil em nosso cenário social e cultural tão impregnado da necessidade de ser visível, reconhecido e admirado, de virar influencer.