Por Daniela Osvald Ramos, pesquisadora do COM+ e professora na ECA/USP
O filósofo Byung Chul Han cunhou o termo “estética do liso” para definir a importância das superfícies na cultura contemporânea e apontar para o que denominou “coerção tátil”, como as telas dos smartphones, lisas, “que dá até vontade de lamber”, como disse Steve Jobs no lançamento do Iphone. O liso não gera atrito, incômodo, serve para ser consumido naquele instante, como uma foto de uma escultura de Jeff Koons, perfeita para postar numa rede social e receber curtidas. “A arte para Jeff Koons não é outra coisa se não ‘beleza’, ‘alegria’, e ‘comunicação” (“A salvação do belo”, Han, 2019, p. 9).
A arte de Romero Britto também opera nesse registro, da “alegria”, “beleza” e “comunicação”. Pode ser uma questão de gosto, mas a crítica de Han é que essa lógica suprime a distância da contemplação, a necessidade de uma pausa para o fruir estético; “O liso media apenas uma sensação agradável com a qual não seria possível conectar sentido ou aprofundamento. Ele se exaure no ‘uau’”(p. 10, mesmo livro citado).
No buzz do momento gerado pelo vídeo da empresária Madelyne, quebrando uma das peças do artista plástico Romero Britto, vemos uma espécie de “orobouros digital”, a mítica serpente que morde a própria cauda, símbolo do eterno retorno de um ciclo que se fecha nele mesmo: a empresária performa para a câmera, lisa, um momentâneo ato de quebra com a estética também lisa do artista; a superfície se quebra, e isso choca a todos os que recebem e viralizam o vídeo, nas superfícies e no transe da coerção tátil. Mas, o que acontece, é que o ato só perpetua a estética do liso, reforçando a ausência de reflexão sobre fatos e acontecimentos que poderiam trazer algum tipo de mudança em uma postura arcaica de autoritarismo.
O ato alimenta o ciclo de trazer fama ao restaurante de Madelyne, no qual Britto teria humilhado sua equipe, motivo pelo qual ela resolve ter agido da forma que agiu (pensar em retratação do artista frente a sua equipe, em privado, nem pensar). Se o que ela fez gerou ou não uma boa imagem para ela e se a fama imediata irá se perpetuar no tempo e gerar mais rendimento ao seu restaurante, deixo para a análise dos especialistas em Relações Públicas, e para os que estudam influenciadores e marcas.
Simbolicamente, o ato segue a lógica da sociedade da transparência, termo também cunhado por Han e título de um dos seus livros. Na sociedade transparente, os espaços invisíveis, ocultos, que não podem ser revelados, desaparecem. Há quem nomeie estes espaços de “privacidade”. Com isso, seria também possível que a gentileza das desculpas formais e educadas também desapareçam na sociedade e que, frente a qualquer ato de grosseria, o culpado mereça sempre ser julgado em público, em uma espiral de vingança, gerando mais e mais visibilidade? Deixo a pergunta em suspenso como um espaço de respiro nestes dias de barraco virtual.
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