Por João Francisco Raposo, pesquisador do COM+
Um dos episódios da quinta temporada do icônico seriado americano Sex and The City trazia a seguinte conversa entre a personagem principal, Carrie Bradshaw, e seu melhor amigo, Stanford Blatch:
Stanford: Antes de dizer, você tem que prometer não julgar.
Carrie: E eu julgo?
Stanford: Todos nós julgamos. Esse é o nosso hobby. Algumas pessoas fazem artesanato e decoração. Nós julgamos.
A fala reflete uma característica inerente – e também paradoxal – no comportamento humano, o julgamento. Ao mesmo tempo em que ele nos dá a capacidade de escolher, de discernir entre o bom e o ruim na vida, por exemplo, o ato de julgar pode se tornar um comportamento nocivo quando falamos da alteridade, do olhar ao outro, da compreensão dele e também de nós mesmos. O que estamos assistindo nos últimos dias no BBB21 é exatamente essa última faceta da nossa capacidade de julgamento, aquela mais patológica e perniciosa, principalmente quando falamos de um programa de entretenimento da TV aberta com classificação etária baixada recentemente para 12 anos de idade. Fiuk, Juliette, Lumena, Bil, Lucas, Carol Conká e outros parecem fazer parte de um BBB da bad vibe, discórdia, da palestra, do cancelamento e também da fúria verbal em forma de cacofonia. Uma luta de egos ao mesmo tempo frágeis e inflados que está trazendo, além de um show de horrores, discussões sobre o papel da TV, dos influenciadores e também do ser humano em uma era de danos emocionais e psíquicos trazidos pela pandemia da covid-19.
Pensando pelo lado antropológico da coisa, precisamos lembrar que experimentos que envolvam humanos são (e sempre serão) complexos (alô, Morin!). É praticamente impossível prever comportamentos e situações, ensaiar todas as falas e montar um teatro 24h por dia na vida real ou quando estamos confinados e sendo testados a todo o tempo. Precisamos nos lembrar que esse BBB em especial possui participantes que já vêm de um confinamento prévio – o da pandemia – que traz um maior peso emocional e psicológico a eles em comparação às edições anteriores. Sair de um isolamento direto para outro (seria um “metaisolamento”?) totalmente espetacularizado pode ser capaz de mexer (e muito) com a mente de todos que dele participam e buscam competir para ganhar o público e o tão sonhado R$ 1,5 milhão.
O que vem acontecendo dentro da casa “mais vigiada do Brasil” reflete diretamente o que fazemos nas redes: julgar, vigiar, curtir, odiar, cancelar, opinar… É o ser humano contemporâneo, das redes de ódio e da polarização que assola não só o Brasil, mas todo o mundo. Sinal dos tempos atuais, infelizmente. E quando analisamos mais de perto os comportamentos dos participantes escolhidos e dos influenciadores convidados – estes que possuem, na sua essência, a capacidade de influenciar opiniões e moldar comportamentos do público por meio dos seus próprios – é ainda mais preocupante ver na TV posturas com doses de sadismo, violência verbal, psicológica e cancelamentos que muitos deles já sofreram previamente nas redes. “Faça o que eu digo, não faça o que eu faço” parece, infelizmente, ainda ter algum sentido em nossa sociedade, mesmo depois dos tempos difíceis em que estamos vivendo, e que exigem mais empatia, mais escuta e mais flexibilidade. Será que vale tudo na busca por visibilidade, pelo prêmio final e pela “fama” pós-BBB? Em um mundo de personas, filtros, likes e hashtags, só o tempo dirá. Mas o certo é que, como seres humanos, vivemos em um tempo que nos pede o trabalho de nossas falhas, nossos gatilhos, nossas sombras (muitas vezes inconscientes) pra que gente deixe de vê-las projetadas no outro e nos esqueçamos que a mudança começa com a gente mesmo.
Sobre o cancelamento… Em texto anterior discutimos sobre o papel da Comunicação nisso tudo, e que estar na boca (ou na tela) do público pela via negativa não constrói diálogos, não aproxima nem oportuniza um trabalho de imagem positiva a longo prazo. Não dá pra generalizar, mas seria mais coerente se a gente começasse a utilizar o bom senso pra cancelar o que faz sentido, sem usar isso como uma arma moral e punitiva (alô,Foucault!) que atenda a nossos desejos egóicos e reforce o que há de pior em nós. E normalizar o erro e a oportunidade/vontade de mudança. Não dá pra cancelar o cancelamento, mas dá pra gente lutar contra o que realmente vale a pena hoje em dia – machismo, misoginia, homofobia, racismo e demais preconceitos e desigualdades sociais – usando a nossa consciência, uma dose de empatia e um pouco de razão. Como disse minha amiga e pesquisadora do COM+, Issaaf Karhawi: “precisamos entender o que é cancelar, e que muitas das atitudes canceladas são crimes já previstos em lei. Assim, podemos enxergar que o cancelamento como ele se estabelece hoje pode não fazer tanto sentido.”
Pra terminar: não custa lembrar que quando falamos em cancelar, falamos também de respeito, de saúde mental e de tolerância ao que outro faz e diz (dentro dos limites sociais e morais, logicamente). Porque nossas “verdades” são nossas bolhas e existem outras partes da história que também podem e devem ser ouvidas e compreendidas. Será que damos conta?
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