A coordenadora do COM+ – Beth Saad, faz uma reflexão sobre como naturalizamos nossas buscas na rede
Um interessante artigo publicado no The Washington Post em 20/10/2020 inspirou esta reflexão. Geoffrey A. Fowler, articulista de tecnologia do jornal fez um experimento comparativo de busca no Google utilizando alguns termos corriqueiros (t-shirts, por exemplo) e, por meio do Internet Archive Wayback Machine, comparou os resultados obtidos nos anos 2000, 2013 e 2020.
Suas conclusões confirmam aquilo que vivenciamos e não percebemos, ou aceitamos, ou melhor, naturalizamos: a plataforma – ciente do comportamento instalado de não passarmos da primeira tela de busca, veio ao longo do tempo aprimorando suas técnicas de preencher tal espaço com posts patrocinados monetizando a busca do usuário, inserindo conteúdos tipo snippets oriundos de outros sites, ou priorizando resultados que levem a outras propriedades do próprio Google (Maps e YouTube) que retroalimentam a roda da monetização a partir de um mesmo usuário.
Fowler afirma que o sistema de busca empobreceu seu conteúdo em detrimento da monetização. O mesmo termo de busca em 2000 levava o usuário para algo consistente logo nos primeiros resultados da tela, já em 2020 a coisa muda de figura. Fiz pessoalmente o teste ao redigir este texto em busca de t-shirts e o resultado foi:
E qual é o problema, se é que ele existe?
O que se questiona tem a ver com a qualidade dos resultados de busca quando inserimos termos mais complexos vinculados a acontecimentos, atos e posicionamentos de instituições de Estado, da mídia e da ciência (apenas para citar os mais evidentes) que impactam e alteram a formação da opinião pública. Instala-se aqui o potencial de abrir espaço para a desinformação. É o jogo vigente.
Não cabe aqui retomar o bordão de que “a culpa é do algoritmo”, já que se segue o outro bordão “algoritmos refletem a lógica de seus construtores”. Na verdade, o cenário apontado por Geoffrey Fowler demostra o quanto as plataformas nos incitam estar na bolha dentro de outra bolha e assim sucessivamente, não criando possibilidades de exploração da curiosidade cognitiva dos bilhões de usuários que, pelo simples clicar em links não-comerciais poderiam ampliar seu espectro opinativo e de conhecimentos.
Sabemos que o Google é o sistema de busca mais utilizado mundo afora, e também sabemos que sua cobertura da rede visível é modesta e limitada a URLs indexadas por seus proprietários na surface web. Dados da VeriSign indicam que ao final de agosto de 2020 a web mundial possuía em torno de 370,1 milhões de registros de domínios – algo como 4% da rede se considerarmos as diferentes categorias de domínios e a web profunda. É aqui que entra um primeiro sintoma de naturalização (ou de direcionamento) – a indexação de URLs é uma ação extra-plataforma, que depende da competência de construtores e designers com relação à definição de ontologias e um bom conhecimento das regras Google para SEO e rankeamento. Terá visibilidade priorizada quem souber aplicar as regras do jogo. Pelo lado do usuário – o público – é um jogo de facilidades já que o rankeamento visível para cada um de nós varia conforme os inacessíveis registros que a plataforma armazena durante nossos percursos na rede. Cada um vê aquilo que o sistema algoritmizado define como “adequado” para um dado perfil, mas que satisfaz as necessidades imediatas de uma busca. Será que questionamos esse processo?
Tal naturalização fica sensível se considerarmos buscas mais complexas no campo técnico-científico, acadêmico e jornalístico. Mesmo no Google Acadêmico, que possui funcionalidades que permitem escolhas por parte do usuário (rankeamento por data, por exemplo) a indexação permanece como um fator importante, apresentando resultados em função da relevância do conteúdo em buscas anteriores e aquelas de outros usuários. Aqui, a sabedoria de evitar a naturalização recai no usuário (novamente!).
Mais um sintoma de naturalização está relacionado ao habitus que o mundo conectado nos impõe. Pra não deixar minha veia acadêmica, recorro ao sociólogo Pierre Bourdieu que conceitua habitus como o funcionamento sistemático de um dado campo, envolvendo falas, práticas e posturas adotadas para atuação e comportamento diante de uma realidade. O habitus define o comportamento dos indivíduos num determinado espaço social e que também é definido pelo comportamento de seus atores e agentes.
O nosso habitus da vida conectada é aquele da rapidez, da solução imediata de necessidades e do não aprofundamento: “dá um Google” é mais um bordão de nossa cultura digitalizada. Portanto, nada como um resultado de busca na primeira tela, sem scroll, pra resolver tudo. Novamente, a balança pende para usuário.
Claro que cada motor de busca da rede tem suas regras e, claro, que o cidadão comum utiliza a busca como um habitus naturalizado. O que dizemos aqui não é uma critica aos motores e ao Google especificamente, mas é uma reflexão sobre questões estruturais (palavra da moda) de nossa sociedade que levam a posturas de passividade e aceitação, de apagamento subliminar de iniciativas que aguçam a cognição como a curiosidade, o questionamento, a correlação de informações e a criatividade, e de uma forma mais ampla geram ondas de opinião no tecido social que, em ultima instancia, são direcionadas por algoritmos, rankings e demais formas automatizadas de informar.
Em resumo, terceirizamos nossa ação na rede para serem governadas por quem?