Por João Francisco Raposo*
A data é setembro de 2019. A popstar Madonna começou sua décima turnê mundial, a Madame X Tour, que divulgava o álbum homônimo lançado no mesmo ano, e que levou a cantora ao #1 das paradas de álbuns em quase 60 países. E o grande diferencial dessa rodada de quase 90 shows pelo mundo era algo que ia contra — pelo menos no senso comum — os dias em que vivemos. Em comunicado enviado aos fãs que compraram ingressos, a empresa Ticketmaster, responsável pelo evento, informava que as apresentações seriam 100% sem smartphones e o uso de qualquer aparelho eletrônico (telefones, relógios inteligentes ou câmeras) estava terminantemente proibido. Os fãs estariam em total poder de seus dispositivos todo o tempo, mas eles estariam lacrados em uma capa especial, podendo ser usados a qualquer momento do show, mas longe do palco, em uma área exclusiva para isso.
Primeiro, vamos contextualizar. Vivemos hoje uma era de excesso de tudo: de imagens, de estímulos, de vozes, de mensagens… E a estratégia da cantora parece, à primeira vista, uma tentativa de retorno à experiência do entretenimento da era pré-internet, dando margem para discussão de alguns conceitos contemporâneos como visibilidade, FOMO, JOMO, detox digital, sociedade do cansaço, dentre outros que vamos discorrer a seguir. Importante lembrar que em 1991, Madonna foi a responsável por criar o formato de reality-show em seu documentário “Truth or Dare”(no Brasil, chamado de “Na cama com Madonna”), no qual câmeras acompanhavam a rotina da cantora 24h por dia nos bastidores de uma de suas mais famosas turnês mundiais. Uma hipervisibilidade intencional e controlada em uma era sem qualquer rede social, streaming de música ou computador pessoal ligado em rede.
Voltando aos dias atuais, para o filósofo coreano radicado na Alemanha, Byun-chul Han, vivemos a “sociedade do cansaço”, uma sociedade característica de uma época de hiperestimulação sensorial e doenças neurais causadas pelo excesso do que ele chamou de positividade performativa (o incentivo a sermos mais e mais produtivos, dando conta de tudo que precisamos fazer). Para o autor, isso nos leva a uma fadiga mental e a uma aversão à contemplação e ao ócio criativo. O mito do multitarefa, para Han, produz uma atenção multiplicada porém dispersa, e ao “infarto da alma” pelo dilúvio informacional e sinestésico do mundo digital. Quem nunca assistiu a “60” stories daquele amigo ou conhecido que foi no show X ou na viagemY e quis registrar tudo em detalhes para seus seguidores? Parece que o “mostrar”, o “ser visto” possuem prioridade em relação ao “vivenciar”(a conta de Instagram @perrenguechique tem feito sucesso mostrando o outro lado da vida perfeita de filtros e legendas das redes sociais).
Assim, essa sociedade, além do cansaço e da estimulação exacerbada, é também a sociedade do espetáculo de Guy Debord, na qual tudo é representação e o olhar do outro media as relações sociais contemporâneas, agora transpostas e reforçadas pelas redes digitais. A cultura da selfie e da participação de Jenkins se somam à necessidade humana de mostrar sua voz na rede e ter seus 15min de fama, previstos por Andy Warhol no final dos anos 60. Pois tudo é passível de registro e “todos somos um veículo de comunicação”, disse Clay Shirky. Nosso cérebro se transformou morfologicamente desde o surgimento da rede, que trouxe interrupções e fluxos informativos não-lineares bem distantes do processo tradicional de leitura em papel.
Escritores e críticos como Jaron Larnier — que lançou recentemente o livro “10 razoes para deletar agora suas redes sociais” e Nicholas Carr, que criticam nosso culto ao agora e às mídias sociais, defendem que estamos cada vez mais superficiais, sem foco e sem empatia quando nos sucumbimos à loucura digital que nós mesmos criamos. Eu, particularmente, não acredito que a culpa seja das mídias digitais, nem da rede em si, mas sim do (mal) uso que nós mesmos fazemos delas, criando um “veneno” no lugar de um “remédio”, pra citar brevemente Derrida. Mas há como não sucumbir a isso?
Por tudo isso, pesquisadores (e a sociedade) hoje discutem (e buscam) alternativas para as enfermidades causadas pelo excesso informativo atual. Uma das síndromes, diagnosticada no começo dos anos 2000, possui o nome de FOMO (sigla do inglês FEAR OF MISSING OUT, ou o medo de ficar de fora, em especial das redes sociais) e suas consequências mais comuns são a ansiedade, o mau humor e até mesmo a depressão. São muitos aplicativos, muitas conexões, muitos posts, muitas mensagens e muitos e-mails para serem lidos e absorvidos em 8h de trabalho ou nas 24h do dia. O vício em ter experiências conectadas e compartilhadas o tempo todo atinge todas a faixas etárias e já possui seu contraponto chamado de JOMO (sigla para JOY OF MISSIN OUT, ou a alegria de estar por fora) que prega o prazer de viver o aqui, o agora, contemplando o momento presente fora das redes digitais. O movimento de Detox digital (#digitaldetox, famosa hashtag que prega a luta contra o vício das redes) também segue a linha anti-excesso informativo, prezando por momentos de silêncio prazeiroso, paz e atenção plena (a famosa Mindfullness) em meio ao caos da vida moderna.
O slow blogging, discutido aqui pela amiga e pesquisadora, Issaaf Karhawi, também faz parte de uma filosofia minimalista de atuação na internet, incentivando a criação de conteúdos em um ritmo mais lento, equilibrado e também mais saudável. Um viver bem provavelmente essencial para que recuperemos um pouco de qualidade de vida e autonomia para uma rotina menos insana e angustiante. Os espaços sem telefone são outro exemplo e vêm se multiplicando no mundo todo, inclusive em escolas americanas. E a marca americana Yondr foi a responsável por criar o sistema “phone free” que Madonna usou na turnê para que as pessoas estivesses “presentes aqui” (como diz seu slogan).
Sobre Madonna: ao proibir os telefones dos fãs em sua nova turnê, me parece que a cantora buscou essa volta à contemplação de suas músicas e suas performances, desta vez apresentados propositalmente, segundo ela, em teatros menores e mais intimistas. A estratégia pareceu casar com o objetivo da rainha do pop de reinventar um formato e uma linguagem de espetáculo que ela mesma (em conjunto com Michael Jackson) criou lá nos anos 90 (só que com muitos estímulos estéticos e visuais), mas agora com mais proximidade e com menos público. Madonna pareceu buscar também recuperar o controle de sua visibilidade dos anos 80/90, nos quais ela mesma pautava a mídia e controlava sua imagem e quando/onde aparecia. Hoje, numa sociedade “Eu posto, então eu existo”, para parafrasear Descartes, Madonna faz uso das redes digitais como estratégia complementar, num mundo controlado e estimulado por algoritmos e bots. Não é a cantora mais seguida, nem com mais views nos stories , muito menos nos vídeos do Youtube (ela disse, recentemente, que as redes sociais como o Instagram servem para“fazer as pessoas se sentirem mal”). Mas seu poder de influência já dura décadas, dentro e fora da rede, ultrapassando as barreiras do digital, sendo a artista feminina mais vendida da história da música mundial, segundo o Guinness. Talvez por isso Madonna pôde se dar ao luxo de ir “contra a maré”; ela sempre foi. E querer que seus fãs não usem celulares em seu show poderia até parecer que ela não estava interessada na famosa mídia espontânea. Será?
Mas a cantora sempre foi bastante midiática e entende bem do assunto (já foi até chamada de Nossa Senhora do Marketing): por isso, é provável que ela estivesse focada em voltar a “ser” sua própria mídia. Se pensarmos em seu histórico de polêmicas e atitudes vanguardistas em quase 40 anos de carreira, Madonna não devia estar preocupada com o que pensam, mas sim em oferecer uma experiência única, controlada por ela, fora do digital usual e com atenção total por parte de seus fãs. Uma invisibilidade intencional, temporal e geograficamente localizada que, paradoxalmente, poderia vir a reforçar sua visibilidade mediada por ela mesma, interagindo/se engajando na vida real com seu fiel público. Madonna, mais uma vez, pareceu sair na frente, e, que fique claro, não quer fugir do buzz da mídia, do digital e nem de todo o espetáculo (jamais!), mas quer ser o próprio espetáculo (como uma boa leonina…).
Veremos quais serão as cenas dos próximos capítulos em um mundo que clama por menos excessos, mais afetos, mais vida real e, por que não, por mais Madonnas.
*João Francisco Raposo é especialista em Comunicação Digital e doutorando pela ECA/USP, e pesquisador no grupo Com+/USP.
(Texto atualizado e originalmente publicado no MEDIUM)