Por Beth Saad, Coordenadora do COM+
Não contem comigo pra construção dessa cultura do cancelamento, tá? “cancelar” a galera nunca resolveu nada, só afastou os equivocados da pauta em questão. Além disso, no dia que eu errar – como ser humano que sou, não vou curtir ninguém me cancelando e sim me instruindo
Tweet de @gloriagroove
O recente artigo da professora Lília Moritz Schwarcz na Ilustríssima da Folha de S. Paulo desencadeou um turbilhão de réplicas, posts, retratações da professora e opiniões diversas sobre a questão do racismo no Brasil já que o post trazia como sentido subliminar a discussão do racismo estrutural no país.
Claro que é uma discussão mais do que pertinente, é necessária e urgente diante do ambiente distópico que vivenciamos e do quanto isso se instala facilmente nas plataformas sociais. Ultrapassa os temas que o COM+ estuda diretamente e, com certeza, temos pesquisadores e profissionais que o estão fazendo com mais propriedade. Mas sim, esse conjunto de posts desencadeado pelo artigo da professora Schwarcz foi discutido por nós dada a sua relevância e temos a dizer que ela errou feio, seja por um olhar de branquitude estrutural e estética, típicos da elite brasileira acomodada na varanda da casa grande, seja pelo delírio de celebridade proporcionado pelo crescente volume de seus seguidores no Instagram.
Mas a questão é outra e mais ampla.
Proponho aqui discutir um ponto anterior que sustenta essa cadeia de polarizações, polêmicas e acirramento das relações e que está sendo chamado de “cultura do cancelamento” – um hype recorrente das redes e das mídias.
O volume de termos atribuídos ao cancelamento que vão aparecendo nos meios digitais e tradicionais é proporcional à estatura intelectual que seus propositores assumem ter ou que as plataformas lhes atribuem. A lista é longa e chama atenção: haters, linchamento digital, cyberbulling, boicotes, intolerâncias, ativismos de todos os matizes, defesa do lugar de fala, defesa de pautas identitárias, espaço para o contraditório, destruição de reputações, perseguições, entre muitos. E tudo isso com o enorme potencial de alavancagem na disseminação por meio da algoritmização das plataformas e uso de robôs.
Afinal, poderíamos afirmar que “cultura do cancelamento” é o melhor conceito para sustentar práticas em voga na rede? Como que pesquisadores do mundo da comunicação podem colaborar para o entendimento do fenômeno e, talvez para, lá de longe, de nosso modesto lugar de fala, reduzir hypes que povoam redes e mídias?
Não temos a intenção de defender Lília Schwarcz e muito menos atacá-la. Possui um sólido histórico intelectual de discussão sobre o racismo estrutural no país. O que temos a pontuar é sua prática de uso das redes, especialmente do Instagram, como representante de influência para seus seguidores (seria uma influencer?)
Estamos percorrendo a fluidez das ambiências digitais e assistimos cotidianamente à ascensão e a queda de identidades digitais, mensuradas pelo limitador índice quantitativo: quantos seguidores? estão aumentando ou perdendo? foi cancelado? E mais, quem são alvos do cancelamento?
De nosso “lugar de fala” de estudiosos da comunicação, a construção do conceito de cultura de cancelamento parte da ideia de cultura e do que ela representa para um grupo social. O termo traduz hábitos e crenças, valores, moral e cultivo de comportamentos coletivos. Ela reflete o próprio tecido social e sua capacidade adaptativa às alterações desse cultivo. Assim, estaríamos falando de um processo de mutação do comportamento social rumo à incorporação de práticas de negação e apagamento. Cancele-se quem não pensa como eu! Cancele-se porque eu odeio! Cancele-se porque…..
Uma escalada talvez sem volta, uma alteração radical do entendimento da subjetividade e da alteridade, um outro conjunto de valores sociais e uma complexa ressignificação da esfera pública.
Mas, é bom lembrar que liberdade de expressão e preservação de reputações ainda parecem ser valores básicos partilhados por todos num contexto de civilidade democrática. A questão está para qual lado pendem os tais valores já que liberdade de expressão não discrimina ideologias e crenças (uma pena constatar isso ante o clima político instaurado no país). E, no cenário de algoritmos e robôs, fica fácil pender a balança para deflagrar ondas de apagamento ao sabor da governança dos dispositivos e dos interesses de quem domina a tecnologia digital. Ou seja, fica fácil cancelar.
Com isso, conceituar cultura do cancelamento é tarefa complicada. Acreditamos que é preciso entender os seus sentidos e significados e utilizar os termos mais adequados e sólidos a cada situação social. Nem tudo que acontece pode ser atribuído à cultura do cancelamento, especialmente nas plataformas sociais.
A cultura do cancelamento não é recente, mas tem sido pouco estudada no campo acadêmico com essa terminologia. Uma rápida pesquisa no Google Acadêmico, tanto em Português quanto em Inglês, registrou menos que 5 mil itens. De toda forma, é preciso entender o fenômeno no campo das Ciências Sociais e respectivos transversais – é da Sociologia, da Antropologia, mas também da Comunicação, da Psicologia, do mundo de Tecnologia da Informação e até mesmo da Economia se incluirmos aí o capitalismo que emerge das plataformas.
A mídia não-acadêmica tem explorado o tema já de algum tempo, muitas vezes vinculado a atos e acontecimentos de celebridades que desencadeiam ondas do cancelar. A cultura norte-americana é pródiga nesta prática. Não vamos listar aqui essa vertente. Buscamos luzes em estudos científicos recentes.
Uma busca que encontrou o filosofo francês Jacques Derrida (sempre os franceses!) e o conceito pós-humano de infestação (hauntology) que solapa os valores sociais vigentes e a produção de sentido toda vez que uma inovação cultural surge. A tendência do tecido social é reagir positiva ou negativamente ao novo por meio de recursos tipo cancelamento. Derrida fala da modernidade tecnológica como “fantasmas que assombram, corrompendo nosso ethos e nossos espaços na ambiência digital”. Para quem quiser saber mais detalhes sobre o tema recomendo a tese do pesquisador norte-americano Austin Michael Hooks.
Assim, é possível atribuir à cultura do cancelamento um fenômeno da retórica pós-humana (aqui entendida como retórica das ambiências digitais) que surge em ondas, acionando aqueles valores humanos preexistentes em nossas consciências em reação ao novo. Para Derrida, é como um grito da modernidade para expor comportamentos sociais politicamente incorretos por meio de palavras e atos.
Pesquisadoras do COM+ já vem, de algum tempo e bem antes dos diversos hypes, estudando a cultura do cancelamento sob o ponto de vista dos processos de comunicação no meio digital. Issaaf Karhawi e Carolina Terra analisam sob o ponto de vista da influência e dos influenciadores, tão celebrados pelos meios publicitários e marqueteiros. Passa Issaaf, o cancelamento pode ocorrer por conta de um processo de construção de conteúdos de uma dada identidade da rede e de sua exposição de intimidade e opiniões que se confrontam com os valores vigentes (vide Derrida): “isso tem nos colocado em bolhas informativas e despertado em nós um comportamento muito binário, do certo e do errado, do dentro e do fora, levando a essa cultura do cancelamento”. Já a análise da Carolina segue para a discussão de uma ressignificação a influência social e (novamente Derrida) por conta dos conteúdos que cada influenciador posta em suas redes – “há que se ter coerência ao contexto social de cada momento”. Para ela cancelamento não pode gerar exclusão.
Por fim, é importante ressaltar que o cancelamento que hoje nos assola é fruto de uma disputa de poderes – de vozes, de influências e de domínio da informação circulante. E a comunicação, como parte das ciências sociais, é um típico campo de disputa (outro francês, Pierre Bourdieu). Ocorre que, hoje, com a aceleração do digital e a algoritmização nas plataformas, o campo de disputa é intangível, cercado de atores humanos e não-humanos que podem disseminar discursos até mesmo falsos e que, por sua vez, des-comunicam.
Resumo da ópera: há que se tomar muita atenção ao rotular um ato comunicativo como “cancelamento” e cabe aos próprios comunicadores explicar o fenômeno e não assumir o mesmo como uma ressignificação de nossa cultura apenas porque a rede facilita.
Espero que você, leitor, tenha percebido que não construímos uma definição de “cultura do cancelamento”. Foi proposital.
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